Sunday, 17 April 2016

aos remotos de todos os Tibetes

Se considero com atenção a vida que os homens vivem, nada encontro nela que a diference da vida que vivem os animais. Uns e outros são lançados inconscientemente através das coisas e do mundo; uns e outros se entretêm com intervalos; uns e outros percorrem diariamente o mesmo percurso orgânico; uns e outros não pensam para além do que pensam, nem vivem para além do que vivem. (...)

Estas considerações, que em mim são frequentes levam-me a uma admiração súbita (...) aos místicos e aos ascetas - aos remotos de todos os Tibetes (...). Estes, ainda que no absurdo, tentam, de facto, libertar-se da lei animal. Estes, ainda que na loucura, tentam, de facto, negar a lei da vida, o espojar-se ao sol e o aguardar da morte sem pensar nela. Buscam, ainda que parados no alto de uma coluna; anseiam, ainda que numa cela sem luz; querem o que não conhecem, ainda que no martírio dado e na mágoa imposta.

Nós outros todos, que vivemos como animais com mais ou menos complexidade, atravessamos o palco como figurantes que não falam, vaidosos da solenidade do trajecto. (...) Os outros - os místicos da má hora e do sacríficio - sentem ao menos, com o corpo e o quotidiano, a presença mágica do mistério. São libertos, porque negam o sol visível; são plenos, porque se esvaziaram do vácuo do mundo.

(Bernardo Soares, in "O livro do Desassossego")

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