Tuesday 16 February 2010

A hora dos imberbes

texto de: O Coxo (re-editado, original de 08/08)

Inácio não tinha relógio, por isso deixou crescer a barba. Havia entre os seus colegas de trabalho quem duvidasse que uma barba pudesse substituir um relógio. Os funcionários são criaturas avessas às pilosidades preferindo uma boa dose de cepticismo e um relógio de quartzo. Mas Inácio não se intimidou. E a dita cuja foi crescendo desavergonhadamente ao ritmo de um centímetro e meio por dia útil.

Era uma barba monstruosa. Possuia uma dinâmica vida interior que se desenvolvia no sentido dos infinitos espaços inter ministeriais. Movia-se com destreza nesse jogo de minúcias temporais, animada de secretas intenções.

Perante o assombro geral, a barba ganhava terreno na repartição. Já tinha chegado ao armário das circulares administrativas e dos procedimentos anexos e ameaçava agora sem qualquer pudor a mesa dos formulários urgentes e dos requerimentos por intermédio de terceiros.

Esta prodigalidade começava a preocupar o Sr. Bonifácio que se ocupava das licenças e alvarás e que tinha visto desaparecer, sob a barba de Inácio, dois dossiers carregadinhos de processos em apreciação.

Várias barbearias, dois cabeleireiros unisexo e uma loja de tesouras ficariam assim irremediavelmente arruinados.

Coincidência ? não para o Sr. Bonifácio, que mantinha a barba debaixo de olho durante o horário legal de trabalho. Sem embargo, fazia cinco minutos de pausa para café de manhã e dez minutos à tarde, onde aproveitava para ler o jornal do ministério, inteirando-se assim dos pormenores mais escabrosos que animavam a vida da direcção geral de assuntos internos.

Um dia os acontecimentos tomaram um rumo inesperado. Bonifácio reparou que a barba crescia assincronamente em horas de ponta. A situação era inaceitável. Os funcionários inquietavam-se e corriam em todas as direcções. Adiantavam relógios na esperança de conter essa força desmedida.

Tinham convicções. Sabiam os horários de cor, com as suas tabelas e anexos. Confiavam na usura. Alicerçavam a sua vida no hábito lentamente acumulado. E agora a barba.

Inácio não se comovia. Vivia no alheamento das sombras.

Na sua loucura preenchia impressos.

As hierarquias rapidamente decretaram a nova situação como perfeitamente enquadrada pelas regras em vigor, o que tranquilizou chefes e sub chefes que se apressaram a espalhar a notícia. Então começou a crescer na repartição um clima de pubescência generalizada. Abandonava-se o relógio em troca de um bigodinho. Rasgavam-se calendários deixando crescer a pêra. Até as senhoras deixaram de depilar as axilas.

Um dia Inácio não veio trabalhar. E toda essa gente se viu entregue à sua orfandade. Olharam para os seus bigodes rídiculos e pêras e axilas e odiaram-se muito. Era um ódio fecundo. E esse fel aprimorava instintos que conduzem inevitavelmente à morte.

O tempo era escasso, a morte urgia e Bonifácio passava alvarás.

Os últimos segundos sairam dos relógios com gravidade. E depois o silêncio.

No dia a seguir a repartição não abriu. Culpou-se o governo e as instituições. Fizeram-se petições, greves de fome, manifestações.

Entretanto numa repartição vizinha Jesualdo comprou um chapéu de feltro por razões desconhecidas, provocando o espanto geral.

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