De tempos a tempos é preciso um corrimão ao qual se agarrar na queda. E há corrimões essenciais. Aqui está um.
excertos de Lugar Lugares, in "Os Passos em Volta", Herberto Helder
Era
uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as
pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles, ao
inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de
verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o
meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias
assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que
é bom.
(...)
À parte isso o lugar era execrável. As pessoas
chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas
nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e
iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no
meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo — diziam. E
depois amavam-se depressa e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite.
Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras) da
sua humanidade,
(...)
E no tal lugar, de manhã, as pessoas
acordavam. Bom dia, bom dia. E desatavam a correr. É o meu inferno, o
meu paraíso, vai ser bom, vai ser horrível, está a crescer, faz-se
homem. E a gente então comove-se, e apoia, e ama. Está mais gordo, mais
magro. E o lugar começa a ser cada vez mais um lugar, com as casas de
várias cores, as árvores, e as leis, e a política. Porque é preciso mudar o inferno, cheira mal, cortaram a água, as
pessoas ganham pouco — e que fizeram da dignidade humana? As
reivindicações são legítimas. Não queremos este inferno. Dêem-nos um
pequeno paraíso humano.
(...)
E eu então fui para o emprego e trabalhei, e agora tenho algum dinheiro,
e vou alugar uma casa decente, e o nosso filho há-de ser alguém na
vida. E então a gente ama, porque isto é a verdadeira vida, palpita
bestialmente ali, isto é que é a realidade, e todos juntos, e abaixo a
exploração do homem pelo homem. E era intolerável.
(...)
E as crianças cresceram todas, e andavam de um lado para outro, e iam
fazendo pela vida — como elas próprias diziam. E então as condições
sociais? Sim, melhoraram bastante. Mas uma delas começou a beber, e
depois o coração estoirou, e ficou apenas para os outros uma memória
incómoda. Parece que sim, que tinha demasiada imaginação, e levaram-na
ao médico e ele disse: aguente-se, e ela não se aguentou. Era uma
criança. Não, não, nessa altura já tinha crescido, bebia pelo menos um
litro de brandy por dia. Nada mau, para uma antiga criança. A verdade é
que era uma criança, e não se aguentou quando o médico disse:
aguente-se.