Thursday 22 May 2008

Same same

Líbia, deserto do Sahara, a sul do Jbel Akakus.

- Today hot. Same same yesterday. - queixa-se o nosso guia, Hussein

Estão quarenta e dois graus à sombra da acácia que estou prestes a fotografar. Sete corpos jazem inertes à volta do tronco ressequido. Tiro a foto: Uma árvore, um poço quase seco, os corpos adormecidos mergulhados na languidez estival, e os jipes, também eles exaustos.

















Poderia dizer-vos que dormiam derrotados pelo sentimento avassalador de impotência perante a vastidão da paisagem, ou dominados pela força subjugadora do céu que se abate sobre as planícies inóspitas da Hamada. Mas não... quem os derrotou foram as moscas !

É sabido que a mosca é um bicho que pode ser particularmente enervante. Ora a mosca do deserto, ávida de companhia, teve todo o tempo de aperfeiçoar a sua arte e fê-lo de tal forma que apenas uma dessas criaturas seria suficiente para arrancar os mais vis impropérios da boca do Dalai Lama.

E assim começou a noite no Wadi Tashwinat : a esbracejar.

Rapidamente aprendemos que a mosca do deserto só é vencida pelo vento do deserto. Mas o vento do deserto não viaja normalmente sozinho: com ele vem a areia do deserto. Muita. E fina. Daquela que fica colada aos dentes. Daquela que trespassa a carne. Entrincheirados nos sacos cama, resistimos como pudémos.

Daqui se tira as primeiras lições: o deserto não se compadece com clichés. A expressão "os grandes espaços vazios" não se aplica certamente às moscas e dormir ao relento nem sempre se reveste do romantismo descrito na literatura.

Mas voltemos atrás: nos dias anteriores tinhámos começado a descobrir o Sahara...

Vindos de Ghadames, a nossa pele ainda respirava a brisa que soprava nas estreitas galerias da medina. Ainda vagueávamos sem destino nessa cidade de um branco impossível. Cidade de sonhos, aqui e ali despertados por uma bicicleta que passa veloz, ou por um som indistinto de passos que dobram uma esquina.

















Mas a Hamada que rodeia Ghadames é outra coisa. Imutável. Igual. De uma monotonia hipnotizante. Planície, horizonte e céu. Ali, até os camelos se aborrecem.

Quando finalmente chegamos a Sebha, à porta do deserto, um desacordo sobre questões burocráticas atrasou a nossa partida. Azdin, o nosso contacto local, desdobrava-se em telefonemas, explicações, cedências, intrasigências, ingerências, enfim, a panóplia habitual de negociações a que já me habituaram os meus interlocutores nesta região do mundo e à qual me entrego com verdadeiro empenho.

Depois, quase sem darmos conta, era outro dia. Estávamos no Sahara. Envolvia-nos um grande nada branco sem horizontes nem céu. Apenas uma luz macilenta que ia dissolvendo as formas. O dia foi passado perseguindo um horizonte impossível. Não tiro fotos. É impossível tirar fotos.

E de repente as dunas. Dunas imensas de areia dourada como nos sonhos. Descalços, humildes perante os gigantes de areia moldados pelo vento, subimos até que o folêgo nos faltasse. Do cimo, as arestas serpenteavam em todas as direcções, caindo sobre o acampamento onde Abdu Arrahman já preparava o chá.

















No dia seguinte rumámos ao Akakus. Os carros em resmunguices de fumo e ruídos metálicos, os corpos relutantes a beber ânimo da luz intensa do dia. Nos fins de tarde testemunhámos a capitulação do dia, devorado pelas sombras que descem das encostas, enquanto em nós crescia esse sentimento de plenitude que se alimenta das coisas belas.

















À noite escutávam-se as histórias de Hussein, numa mistura de línguas que tornava a narrativa bem mais divertida:

- Alain, turist, had GPS. Hussein no GPS, only testa. GPS Alain no good !

Em Ghat, onde tomaríamos a estrada de asfalto que nos conduziria à entrada das dunas de Idehan Ubari, o vento vindo da Argélia soprava forte e ia juntando areia às nuvens já espessas. À medida que a tempestade de areia ganhava corpo, Hussein inquietava-se.

Ao chegar a Tekerkiba, com os dois jipes face às dunas e a tempestade ameaçadora no horizonte, alguém fraquejou:

- c'est fou, c'est fou ça !

Era o cozinheiro que acordava do seu sono perene.

(ainda não vos tinha falado do cozinheiro, Hassan. Rapaz franzino, de palavra poupada e sono fácil)

Na hesitação da partida, no momento em que alguém concluía ser prudente desistir, um terceiro jipe passa por nós a toda a mecha. Foi o que Abdu Arrahman esperava para quebrar o impasse: antes que eu pudesse dizer "otorrinolaringologista", já desbravávamos as dunas em direcção ao oásis de Mandara, inspirados pela ousadia do carro que acabava de passar.

















Progredíamos nas dunas, os motoristas manobrando os volantes com destreza, quando o jipe de Abdu Arrahman deu mostras de alguma indignação pelas condições de trabalho. Tudo começou por um "clac". Quando demos conta já era um "clac, clac, clac". Ora qualquer mecânico de pacotilha sabe as graves implicações de um "clac, clac, clac". No meios dos "clings", "criiis" e "puffs", um "clac" não passa despercebido. O caso era grave.

De súbito, quando parecia certo que atrás de uma duna só poderia haver outras dunas, fomos surpreendidos por uma visão para a qual nem as mais elaboradas expectativas nos tinham preparado: o oásis do lago de Mandara. Detive-me um momento face à paisagem, numa tentativa de assimilar tudo aquilo antes de o perder na memória.

Alguns quilómetros mais à frente, o lago de Umm Al Maa. Ainda mais surreal. Uma faixa estreita de água salgada em reflexos de palmeiras, com dunas precipitando-se sobre as margens. Perfeito como uma miragem.

















De manhã a moral era alta para alcançar o último objectivo da viagem: o lago de Gebraoun. Mas alguém se tinha esquecido do famoso "clac" do dia anterior. Alguém menos o próprio. E assim se morre à beira da praia. O carro de Abdu Arrahman já não poderia continuar muito mais.

- Máquina... no good. - sentenciou Hussein.

Regressámos a Sebha onde tomaríamos o avião para Tripoli. Nas despedidas prometemos voltar um dia para descobrir o último lago.

Mas na realidade se voltasse não seria pelo lago. Seria antes para me sentar junto à fogueira de Abdu Arrahman ouvindo as histórias de Hussein no seu Inglês de improviso. Porque, como ele dizia frequentemente:

- Hussein many friends... and friends same same família !

2 comments:

Hugo França said...

Obrigado por partilhares as memórias da tua viagem.
E uma fotografia do Hussein não há?

Vasco said...

Pois é, falta o Hussein... e uma foto duma mosca.
Muito bonito.
Vê-se bem que não tens medo das casas de banho (ou falta delas) :-D
C.Vasco