Thursday 20 December 2007

Natal e VHS

texto de: O Coxo

Nunca me convenceu a história do Pai Natal descer pela chaminé. Pela varanda sim, pela janela do quarto com vista para a palmeira talvez, pela porta da frente que estava sempre aberta.

À dona Arminda que vivia duas casas abaixo uma vez entrou-lhe um gatuno pela janela da cozinha e roubou-lhe o leitor VHS, o gira discos e um broche de prata que estava em cima da cómoda da entrada
– veja lá que nunca o ponho na cómoda da entrada e ontem...

O broche de prata e uma nota de cinquenta escudos rasgada num canto.

E a nós nem pela chaminé nem pela cozinha nem pela porta da varanda onde dormia o cão. Felizmente o cão. Um rafeiro tão sem raça que não queria ter nome. Chamámos-lhe Rex, Bolinha, Apolo, Pluto, Nero, Pipoca, Ringo, Snoopy, Trovão, Spoutnick.
A minha mãe ao vigésimo nome
– se calhar é surdo
Mas não, porque digo senta e ele senta. Assobio lá de baixo da casa do Fernando e nem dez segundos e o rafeiro a abanar a cauda em frente ao portão.

Se calhar o Pai Natal pela varanda não por causa do cão. Talvez pela janela do quarto apesar de pequena e da pouca luz no inverno.

Pela chaminé é que não de certeza.

Uma vez espreitei pela chaminé e uma nuvem de fuligem nos olhos. Os olhos como quando o champô no banho ou uma vez ao pôr o creme das alergias – em caso de contacto com os olhos lavar abundantemente com água. Consultar o seu médico no caso de irritação prolongada. A cara negra e a minha mãe numa irritação prolongada
– que andavas a fazer na chaminé ?

Nunca me convenceu a chaminé. Por isso nas noites de consoada a janela do quarto nunca trancada. Ao mínimo barulho – os ratos no sotão, os móveis que estalam, esses ruídos sem dono que habitam as casas velhas – ao mínimo barulho espreitar pela janela.

Ao mínimo barulho espreitar pela janela mesmo se o irmão mais velho
– O Pai Natal não existe, a sério não existe
Apesar disso não acreditar que não existe, não acreditar que a sério.

E um dia um barulho sem ser dos ratos no sotão ou dos móveis que estalam (muito provavelmente a janela do quarto que fica sempre aberta pelo sim pelo não).

Um dia um barulho sem ser dos ratos e eu a fingir dormir (difícil não piscar os olhos, aguento cinco, seis segundos no máximo).

Sentir um vulto na direcção da sala
– não existe, a sério não existe.

Na manhã seguinte acordar e a minha mãe sobressaltada na cozinha. Parece que já não temos o leitor VHS, o televisor e o candelabro que fica por cima da lareira. Os senhores da polícia não descobriram sinais de arrombamento
– pela varanda não que há o cão.
– só se foi pela chaminé, já tivemos um caso de uma chaminé.

Nunca me convenceu a chaminé.

A dona Arminda jura que não ouviu nada e eu tão pouco pois normalmente ao mínimo ruído espreito pela janela e nessa noite, depois do Pai Natal sair, só mesmo o barulho do vento a agitar a palmeira.

No comments: