Tuesday 25 September 2007

Não toques nos objectos imediatos

Herberto Helder em "Poesia Toda»

Não toques nos objectos imediatos.
A harmonia queima.
Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,
são loucos todos os objectos.
Uma jarra com um crisântemo transparente
tem um tremor oculto.
É terrível no escuro.
Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer.
A boca fica em chaga.

Monday 17 September 2007

Janela para as traseiras na Jordânia

Quando viajo, prefiro hotéis básicos. Desses que normalmente têm lugar na secção budget do Lonely Planet. Não pelo preço, mas porque gosto desses lugares crus, quase extensões da rua, em que os gestos não são pensados para alimentar estereótipos numa espécie de reconfortante mentira encenada para o turista.
Mas esta visão romantizada do intrépido viajante ocidental mostrou os seus limites esta semana, quando subia as escadas do Madaba Hotel na Jordânia às 4h da manhã e a porta se abriu sobre um quarto poeirento, habitado por pequenos seres repugnantes que perscutavam as frestas mais obscuras da divisão com as suas anteninhas nervosas. Essa noite, dentro do saco cama sonhei com a Metamorfose de Kafka.

No dia a seguir à mesma hora já dormia no conforto de um dois estrelas, embalado por vozes com sotaque britânico que ecoavam no corredor.

O dia passou-se nas margens do mar morto, com o passaporte sempre à mão para apresentar aos simpáticos polícias que vigiam a fronteira com Israel e os territórios ocupados, e a observar os turistas entregues ao ritual estive-lá-fiz-o-que-toda-a-gente-faz de boiar sossegadamente nas águas salgadas do mar morto enquanto liam o último livro do Paulo Coelho.

Em Petra esperáva-nos o Al Anbat Hotel II. O número II é de extrema importância pois implica que existe algures um Al Anbat Hotel I, provavelmente com lençois limpos. Nunca saberei. Fico com a recordação do conforto do meu saco cama e a satisfação de ter conseguido 20 minutos de água quente depois de duras negociações com o rapaz da recepção.

Petra é magnífica. Dois dias de visita não permitem compreender as subtilezas do erótico jogo a que se entrega a luz do sol quando acaricia as sublimes fachadas esculpidas na rocha. Valeu todos os Al Anbat II, III e até IV.

Depois de Petra o deserto. A viagem de autocarro forneceu companheiros de ocasião. Em casa de Mohammed, o guia, tentámos negociar um percurso mas cedo nos afogámos na verborreia do experiente negociante beduíno que nos convenceu das virtudes do seu percurso. Levados pela enxurrada de clichés do simpático barbudo, não nos arrependemos: cedo caminhávamos de pés descalços na areia vermelha de dunas improváveis, transformávamo-nos em pequenos pontos nas dramáticas paisagens rochosas, fitávamos incrédulos os gradientes de luz impossíveis morrendo no horizonte. Até que a noite nos cobriu de estrelas que murmuravam luminescências em promessas de sonhos. Dormimos.

Na capital o Amman Palace Hotel tinha um nome promissor. Na zona mais pobre do centro de Amman, eu não me fiava no nome. Nunca fiar. Ao chegar a entrada era promissora. A entrada promissora combinava com o nome promissor para prometer um quarto no mínimo promissor. Mas em Amman o prometido não é devido e essa noite dormi ao som dos cantos tradicionais do coro senior feminino da mesquita King Hussein interpretando o tema: Burkas ao vento, transmitido em stereo e em directo para um rádio estrategicamente situado na rua por baixo da janela do nosso quarto. Ainda tremo quando oiço a palavra "Habibi".

Confesso que no fim destas linhas podia bem repetir o ritual de fim de tarde a que a lei do ramadão nos forçou: dirigir-me ao famoso restaurante Al Hashem ao pôr do sol para uma mesa de "mezzes". Ficar ali sentado a experimentar o meu árabe de "phrasebook", descobrindo iraquianos e palestinianos, refugiados dos respectivos conflitos e que agora faziam parte dessa cidade de contrastes que é Amman.

Ficava-se ali nessa ilusão romântica de fazer parte do sítio que se visita. Até que alguém te confessa que vive na ilusão romântica de trocar de vida contigo. Aí apercebes-te que o teu romantismo é obsceno. Olhas para o relógio. São horas de voltar para casa.

Sunday 2 September 2007

Amor e estátuas na Catalunha

O Coxo, setembro 2007

Percorre-se as ruas estreitas de Raval. Há gente descalça sentada no chão. Vigiam-nos mulheres de formas excessivas que oferecem o corpo num sorriso incompleto: seis dentes, espaço vazio, cinco dentes. Raval são prostitutas e paquistaneses.

Dobra-se a esquina e é outra cidade. Carreirinho de turistas descendo a Rambla num fervor de formigas. Homens estátua admiravelmente humanos. Tiravam-se os turistas e ficavam os homens estátua na expectativa dos pombos.

(O homem estátua ama os pombos de forma superlativa, os pombos defecam nos homens como nas estátuas. A legitimitade do homem estátua oscila assim nesta ambivalência)

Navega-se nesta torrente humana até desaguar num lugar qualquer. Tudo é muito verdadeiro: as sombras que crescem até se tocarem, a noite que cai desenhando graffitis nas vitrines, a luz que nasce nas supostas candeias.

Depois pára-se. Ri-se muito de tudo isto e observa-se as gentes que passam frente ao Mercat del Born. Dizemo-nos não sou de cá, assobiamos e ninguém acode às varandas
"já desço !"
nenhuns passos em nenhumas escadas numa agitação de ilhas
"quem é ?"
atirar gravilha às janelas e nenhum grito
"já ouvi !"
E no fim silêncio e cheiro a urina, o caminho recalcado e esta espécie de nostalgia que não sabe a nada.